Toda a criança desenha. Como compreender esse processo que começa igual para todas e vai se desenvolvendo? Como olhar o amadurecimento do ato de desenhar e identificar seus marcos?
A criança, mesmo em atividades coletivas, é única. Quando está desenhando não é diferente. Desenhar é expressar-se por meio de marcas, num modo próprio. É criação, é conquista de desenvolvimento motor e intelectual, é uma conversa com os saberes e a cultura que, nos primeiros meses de vida, tem características humanas universais.
O desenho, como Edith lembrou na postagem “Palavra de Edith Derdyk o desenho do gesto e dos traços sensíveis” é linguagem inata: toda a criança, de qualquer tempo e lugar, desenha. Toda criança possui intimidade com o desenho como ponte de investigação, expressão e comunicação com o mundo.
Da mesma forma que um desenvolvimento transformador, que passa por conquistas graduais e individuais, leva o bebê a andar, também o leva a ser capaz de desenhar. A criança começa a se expressar nos primeiros traços e percorre um caminho até realizar desenhos mais organizados e elaborados. Rosa Iavelberg ainda destaca que a única coisa que sabemos ser universal no desenho infantil é a garatuja. Todo o resto depende do contexto cultural.
Etapas flexíveis do desenho
As etapas do desenvolvimento na maneira de se expressar estão separadas por momentos muito tênues, flexíveis, mas que permitem observar e conhecer o modo como cada criança desenha ao longo do seu amadurecimento. A passagem de uma maneira de desenhar para a outra pode ter idas e vindas e muitas vezes misturar características de vários momentos. Podemos fazer um paralelo com os artistas nas pesquisas que realizam para suas obras. Não devemos ver cada etapa em forma de bloco estanque, até porque estaríamos formulando teorias que podem excluir o que não estiver de acordo com uma “norma prevista”. E esta não é a intenção! Ao conhecer as fases do desenho da criança o professor dispõe de elementos do universo infantil, e pode perceber e compreender a singularidade de cada pequeno no seu próprio processo de pesquisa e descobertas.
O conhecimento sobre as etapas do desenho não é importante para a criança em seu processo individual, mas é interessante para o educador poder acompanhar e identificar as conquistas de seus pequenos, tornando-se sensível ao universo gráfico infantil.
O corpo como expressão
A criança de 0 a 2 anos relaciona-se com o mundo através do corpo e com ele demonstra suas percepções, sensações e emoções. Nessa época a imitação é um importante mecanismo da aprendizagem. Assim como imita gestos (aprendendo movimentos) e sons (aprendendo os rudimentos da fala) a criança imita a ação do adulto de riscar o papel.
Bebês podem imitar a ação dos adultos e riscar a partir dos 6 meses, mas é por volta dos dois anos que a criança começa a desenhar pelo prazer de deixar marcas. Para a filósofa da arte Florence de Mèredieu (1974), o primeiro espaço gráfico da criança é o corpo sobre o papel, ou seja, os movimentos de seu corpo no espaço. Em seguida, o estímulo visual dos próprios traços que ela registra no papel, na areia, no chão e nas paredes passam ser motivadores. Mas sua ação está ligada às marcas que surgem e, por não serem ainda uma pesquisa, se a ponta do lápis quebrar a atividade pode parar. Isto porque, o importante para a criança neste momento é a variedade de marcas (garatujas) que ela pode realizar com muitos tipos de gestos e a exploração das diversas maneiras de preencher o papel ou qualquer espaço.
Percebendo as marcas
Nessa etapa, ao desenhar, a criança faz um traço, observa-o e segue produzindo outros traços na busca de ficar satisfeita. O preenchimento do suporte com inúmeros traços levou a psicóloga, pesquisadora e professora de creche Rhoda Kellogg, chamar este processo de relação mão-olho. Nesta fase, quanto mais oportunidades de desenhar forem dadas à criança, mais extensa será sua pesquisa gráfica para que desenvolva esse controle, faça descobertas e registros com sua maneira de desenhar. A doutora em psicologia e educação e formadora, Denise Nalini, defende que na Educação Infantil a criança deve desenhar todos os dias.
Nascem as primeiras garatujas
A frequência do desenhar permite à criança memorizar sua forma de criar e, na medida em que vai ganhando controle motor, produz as mesmas formas de maneira mais limpa e controlada. Com a memorização as formas passam a fazer parte do repertório da criança e possibilitam inúmeras experiências por combinações, sobreposições, agrupamento ou repetição, surgindo um grafismo.
O surgimento das figuras
Ao desenhar livremente, a criança sobrepõem traços e explora a ocupação do espaço. Aos poucos, sobrepondo as marcas, as formas começam a aparecer e novas ocupações do papel (suporte) são descobertas. Algumas crianças ocupam todo o espaço, outras desenham mais próximo à borda. Surgem algumas formas irregulares, livres, e outras um pouco mais definidas, sugerindo quadrado, triângulo, círculo, cruz e o xis.
No processo do grafismo infantil nasce a organização concêntrica. O desenho tem o centro marcado e apresenta certa simetria. Esta etapa, para Kellogg, é a chave visual que leva a criança ao trabalho figurativo. Nascem, então, os formatos de sóis.
Neste caminhar, com a exploração do próprio desenho – desenhando, desenhando e desenhando gostoso! – as crianças fazem suas conquistas gráficas. É uma fase importante em que aprendem a desenhar a cada novo desenho que realizam (não com modelos prontos!). Não direcionar e deixar a pesquisa livre são estímulos para a criança não se tolher e nem se bloquear em seu fazer artístico. Mirian Celeste Martins, professora de pós-graduação em Educação, Arte e Cultura da Universidade Mackenzie, diz que muitas crianças chegam ao Ensino Fundamental com a expressividade bloqueada justamente por conta do direcionamento que tiveram na infância para atividades como reproduzir ou colorir desenhos prontos.
O desenho é fundamental
Os professores devem proporcionar oportunidades para as crianças experimentarem diferentes formas de desenhar. Elas precisam explorar a pressão com que marcam o suporte, diferentes planos e materiais para descobrir suas qualidades:
- liso e o áspero
- grande e pequeno,
- seco e molhado,
- quente e frio
- macio e duro
- rígido e molhe
- reto e curvo
- fino e grosso
- etc..
Também explorar diversas possibilidades de riscar, marcar, modelar e pintar sobre superfícies variadas:
- ajulejo
- chão,
- madeira,
- papel,
- papelão,
- plástico
- parede,
- tecido,
- areia,
- terra
- lousa
- etc.
A experiência é mais importante do que o resultado
É uma prática comum do adulto perguntar para a criança o que ela desenhou. A criança pequena que não pensou numa narrativa durante a execução do desenho, acaba por criar um significado de momento para corresponder à expectativa do adulto. Desse modo, ao ser cobrada sobre uma explicação, ela passa a entender que somente formas figurativas às quais se pode atribuir um nome são compreendidas e valorizadas pelo adulto. Nesta fase do desenvolvimento a criança ainda não é capaz de executar o que está sendo solicitado e passa, antecipadamente, a buscar soluções esquemáticas e figurativas para a sua produção. Talvez possamos refletir um pouco mais sobre como a criança desenha e menos com o quê o desenho conta sobre o que a criança é! nos lembra Edith Derdyk. Outra prática comum dos professores é escrever os significados dos desenhos na própria produção, interferindo na sua estética. Quando a criança faz uma narrativa sobre sua produção é mais respeittoso fazer anotações no verso do desenho.
Figura humana
Uma mudança grande ocorre a partir dos três anos. Surge a figura humana e o desenho como um todo passa a ser mais figurativo. Nessa fase a criança está vivenciando a fase do faz-de-conta e ampliando o uso das palavras e das narrativas. Assim, tudo passa a ter nome e, com o desenvolvimento da linguagem, também significados. É uma delicia ouvir as descrições e narrativas criativas dos pequenos nesta fase!
Conforme estudo de Kellog, os agrupamentos e sóis concêntricos da fase anterior começam a dar elementos para a figuração. Os raios do sol se transformam em pernas e braços, que saem diretamente da cabeça. A criança, sem abandonar de todo as garatujas, começa a elaborar novos símbolos como uma espécie de vocabulário visual, construído a partir da extensa pesquisa gráfica. É como se buscasse resolver desafios: como meu corpo pode fazer essa marca? Que desenho bacana o do meu colega! Vou tentar copiar seus gestos!
Florence de Mèredieu propõe considerar a evolução do grafismo não como uma caminhada para uma figuração adequada ao real, mas com uma desgestualização progressiva.
Inventando formas de fazer outras figuras
Os estudos de Kellog indicam que uma mancha surge para ser o tronco que sustenta a cabeça, e raios fazem os membros. Depois é a vez dos animais. A criança joga os membros para baixo e cria seus bichinhos. Da mesma maneira surgem árvores, flores e vegetais. Combinando as formas já aprendidas surgem as casas e meios de transporte. Nesta fase, ela não está preocupada em fazer desenhos parecidos com os seres e objetos do mundo real.
Diversos aspectos marcam as produções das crianças:
Partilhar a descoberta
Antes dos quatro anos a criança já observa o resultado de suas marcas, dos amigos e sabe dar sua opinião. O professor pode propiciar momentos de troca das soluções gráficas, compartilhando descobertas. Não adianta mostrar o resultado de uma marcacomo por exemplo um circulo para inspirar as outras crianças. Nesta fase a crianças copia os gestos. Assim, o professor pode ajudar as crianças a perceberem os movimentos que geram as diferentes marcas dos desenhos.
Desenhar para a criança é crescer. Ela conecta corpo, mente, sensação e emoções num ato que parte do lúdico e mergulha na criação e no sonho. Desenhar, desde que se possa segurar um riscador e riscar é permitir a poesia infantil.
Desenhar para a criança é crescer. Ela conecta corpo, mente, sensação e emoções num ato que parte do lúdico e mergulha na criação e no sonho. Desenhar, desde que se possa segurar um riscador e riscar é permitir a poesia infantil.
Os significados do ato de desenhar na infância têm sido estudados por diversos autores com olhares múltiplos. Há quem os veja pelo aspecto do desenvolvimento humano, antropológico, psicológico, educativo, artístico e cultural. Piaget, Vigotski, Lowenfeld, Luquet, Rhoda Kellogg, Florence de Mèredieu, Silvana Augusto, Edith Derdik, Miriam Celeste Martins e Rosa Iavelberg, entre outros, contribuíram para compreender a importância do desenho nos primeiros anos da criança e nos ajudam a acompanhar as transformações gestuais, de percepção e da capacidade de representação, independente da expressão por meio de desenhos figurativos.
Fonte: Blog Tempo de Creche
Os desenhos são das crianças dos CEIs Barra Manteiga, Toca do Coelho e Corre Cotia, de São Paulo.
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